Gorongosa – um antigo problema ecológico
Maputo (Canalmoz) - O sinal de alerta lançado sexta-feira última pela ministra da Coordenação da Acção Ambiental, Alcinda Abreu, para o perigo de aluimento de terras na Serra da Gorongosa, mercê de práticas agrícolas erradas, serviu para ilustrar um dos aspectos da grave situação que se faz sentir nesse ponto do país. Tais práticas, a par das queimadas descontroladas, do derrube de árvores, do garimpo e da dizimação de espécies animais, espelham uma realidade amarga que se tem vindo a agravar desde a independência em 1975. Efectivamente, trata-se de um problema já antigo que conheceu novos contornos com o advento da independência nacional.
A guerra civil entre a Renamo e o regime da Frelimo é apontada como a causa fundamental da dizimação de espécies, caindo o odioso da questão sobre as forças da guerrilha. De acordo com a página que o Parque Nacional da Gorongosa (PNG) dispõe na Internet, o PNG “nos anos 70 contava com mais de 14 mil búfalos, mas na década 90, após a Guerra Civil, esta população selvagem havia sido reduzida para apenas 60.”
Sabe-se, no entanto, que antes do eclodir da guerra civil, as autoridades moçambicanas apostaram numa política de abate indiscriminado de búfalos, quer dentro dos limites do Parque Nacional de Gorongosa, quer nos vizinhos tandos de Marromeu. Em «Participei, por isso testemunho», Sérgio Vieira confirma essa política de dizimação de búfalos, afirmando que era “com ética e dignidade” que anualmente se abatiam entre 1500 a 3000 cabeças de búfalos nos tandos de Marromeu”. Segundo Sérgio Vieira o abate visava “manter o equilíbrio ecológico e o habitat".
Fontes da antiga empresa de safaris moçambicana, SAFRIQUE, contactadas pelo Canalmoz, fornecem uma imagem diferente da matança – ou chacina – de búfalos. Contrastando liminarmente com a versão apresentada por Sérgio Vieira no seu livro de memórias, uma dessas fontes referiu que pouco depois da independência, o “governo deu instruções à SAFRIQUE para executar essa chacina, dizendo que era um programa para manter o equilíbrio ecológico na zona ( Tandos de Marromeu ), mas na verdade foi um programa de abate de búfalos para suprir necessidades urgentes de carne para diversas zonas.”
Acrescenta a fonte que “inicialmente o abate dos búfalos pressupunha a utilização de drogas em dardos, que eram disparadas de helicóptero com uma espingarda. Esses dardos por vezes falhavam o alvo ou soltavam-se dos animais. Isso era um perigo para o pessoal que andava a pé, descalços, a recolher e desmanchar os animais abatidos.”
Salienta Canelas de Sousa, uma das fontes de que nos servimos, que “logo nos primeiros dias, dada a ineficácia ou inexperiência na utilização dos dardos, optaram pelo abate a tiro (carros + helicópteros ) que reuniam e encaminhavam as manadas para os locais de abate. Os animais eram «empurrados» pelo helicóptero e jeeps para uma zona de abate, onde se encontravam os camiões com dezenas de pessoal. Os tiros eram disparados tanto do hélio como de um jeep que ia rodeando a manada para não se dispersar.
Cada manada que era isolada, era abatida na totalidade, para evitar «animais traumatizados». Eram as instruções que na altura foram dadas à equipe de abates.”
Um Crime Ecológico
Prossegue a nossa fonte: “Os búfalos abatidos eram depois esfolados e esquartejados praticamente no local de abate. Eram aproveitadas as peles, patas e crânios dos búfalos para um programa de revenda para artesanato, que foi um fracasso.”
A carne, de acordo com a nossa fonte, “era cortada às tiras e salgada para seca. Posteriormente eram feitos fardos de carne seca em tiras, tipo «biltong», que seguiam nos vagões para destinos diversos.” A fonte salienta que “o inicialmente pensado programa de transporte de carne em vagões frigoríficos dos Caminhos de Ferro não funcionou” devido a deficiências no sistema de refrigeração, entre outros problemas. “Tiveram de optar pela carne seca”, disse-nos a fonte para quem o abate de búfalos “foi um crime ecológico em que fomos obrigados a participar”.
A necessidade de carne – e não de manutenção do “equilíbrio ecológico e do habitat" como alega o autor de «Participei, por isso testemunho», já havia sido denunciada por Adelino Serras Pires em artigo de opinião publicado no semanário «DEMOS». Para Serras Pires, “Sérgio Vieira foi quem liderou a matança indiscriminada de búfalos nos tandos de Marromeu para alimentar as forças do ZANLA que estiveram aquarteladas em Moçambique desde 1975 a 1980”. (Demos, 07 de Março de 2001 p 7)
A matança de búfalos, na fase a que Serras Pires se refere, começou por ocorrer, segundo a fonte da SAFRIQUE que temos vindo a citar, dentro dos limites do PNG. A utilização de parques ou reservas nacionais para matança de animais para fins de lazer é também confirmada pelo autor de «Participei, por isso testemunho». De acordo com Sérgio Vieira, o antigo ditador romeno, Nicolae Ceausescu, no decurso de uma visita de Estado efectuada ao nosso país convidado pelo seu homólogo moçambicano Samora Machel, foi autorizado a caçar elefantes na Reserva de Maputo. Acompanhado de Sérgio Vieira e Lobão Telo, num helicóptero, Ceausescu, de AK-47 em punho, localizaram a manada de elefantes. “Para escândalo de todos, de dentro do helicóptero, Ceausescu desatou a disparar contra o animal, um total de vinte e três balas para abater a vítima”. “Coube a Machungo (NR: actual PCA do Millennium-bim), na época dirigindo a pasta da Agricultura, a triste pena de levar o troféu a Bucareste onde o entregou ao Presidente (Ceausescu) numa cerimónia que consagrava, mais uma vez, as grandes proezas venatórias do chefe. A que leva o culto da personalidade!”, escreve Sérgio Vieira no seu livro.
Ressalta que atribuir à guerra civil a causa fundamental da quase extinção de búfalos na zona centro do país é algo que peca por imprecisão e desconhecimento da realidade. Embora a Renamo tivesse iniciado a sua acção de guerrilha na zona da Gorongosa, com maior intensidade a partir de meados de 1979, ela seria forçada a abandonar a zona depois da independência do Zimbabwe. Efectivamente, nos princípios de 1980, a guerrilha desloca-se para Sul do corredor da Beira. Só a partir de meados de 1982, é que a guerrilha da Renamo regressa à Serra da Gorongosa, altura em que a matança anual, “com ética e dignidade”, entre 1500 a 3000 cabeças de búfalos para alegadamente “manter-se o equilíbrio ecológico e o habitat" já havia tido lugar.
(Redacção)
2010-06-21