Alfabeto para combater a pobreza – G como Género
É claro que numa reflexão sobre a pobreza a questão do género não pode faltar. Um dia quando se escrever a história geral das grandes halucinações no mundo o capítulo sobre a indústria do desenvolvimento vai registar o género como uma das maiores descobertas feitas por esta indústria. O leitor sem imaginação vai se perguntar que parvoíce é esta já que género sempre existiu. O leitor com imaginação vai sorrir e dizer sim, até porque estou casado com uma delas. A leitora vai se insurgir e dizer, bem característico do machismo que permeia a nossa sociedade; o único leitor que o autor imagina só pode ser homem. Bom, não é bem assim. Estão todos enganados. Sempre existiram homens e mulheres. A grande novidade introduzida pela indústria do desenvolvimento foi de que a posição ocupada por homens e mulheres na sociedade era estruturalmente desigual e, no fundo, a principal causa da pobreza feminina que, por extrapolação – já que as mulheres nos países pobres é que fazem tudo – determinava a pobreza desses países.
A forma doentia como esta descoberta do género é imposta como critério de avaliação do nosso compromisso com a luta contra a pobreza irrita. E, ainda por cima, é suspeita. Irrita por causa da impaciência dessa indústria que se manifesta um pouco na ideia de que sem a resolução do problema do género não haverá desenvolvimento. É como se se esperasse que fóssemos os primeiros no mundo a resolver esse problema, um feito – apresso-me a dizer – que não seria mau, mas não tem nenhuma relação com as nossas probabilidades de resolver os problemas do desenvolvimento. Quando estudei sociologia nos anos oitenta em Londres uma boa parte do corpo docente do meu curso era composta por professoras, todas elas profundamente envolvidas com as perspectivas feministas – ainda para mais, marxistas. Aprendi muito delas e com elas.
A forma doentia como esta descoberta do género é imposta como critério de avaliação do nosso compromisso com a luta contra a pobreza irrita. E, ainda por cima, é suspeita. Irrita por causa da impaciência dessa indústria que se manifesta um pouco na ideia de que sem a resolução do problema do género não haverá desenvolvimento. É como se se esperasse que fóssemos os primeiros no mundo a resolver esse problema, um feito – apresso-me a dizer – que não seria mau, mas não tem nenhuma relação com as nossas probabilidades de resolver os problemas do desenvolvimento. Quando estudei sociologia nos anos oitenta em Londres uma boa parte do corpo docente do meu curso era composta por professoras, todas elas profundamente envolvidas com as perspectivas feministas – ainda para mais, marxistas. Aprendi muito delas e com elas.
Tive, obviamente, que ler muita coisa desse género (!), mas um texto de 1792 que me fascinou foi o de Mary Wollstonecraft, uma formidável mulher, com o título “A Vindication of the Righs of Woman” (Em defesa dos direitos da mulher) que era uma resposta acérbica ao texto tido por muitos como sendo fundador dos direitos do homem, nomeadamente de Tom Paine (1790) com o título “The Rights of Man” (Os direitos do homem). O texto de Paine é completamente cego em relação ao género, o que é normal quando um homem escreve. Grave, contudo, foi a reacção de Edmund Burke, uma das maiores figuras intelectuais inglesas, que escreveu vários textos a defender a ideia de que a extensão do voto à mulher seria o fim da democracia e da harmonia social. Essa atitude legitimou, em grande medida, os maus tratos infligidos às mulheres que faziam campanha pelo sufrágio feminino e que entraram para a história com o nome de “suffragettes”. De lá para cá as práticas mudaram, mas a hostilidade contra as mulheres nas democracias mais consolidadas continua.
Acho a descoberta do género pela indústria do desenvolvimento também suspeita porque por vezes dou comigo a pensar que é uma maneira muito estratégica de nos definir como sociedade, maneira essa que cria as condições de legitimação da intervenção externa. Para mim o pior exemplo disto é esta história de micro-créditos, sempre a bater na tecla de que os homens são bêbados ou descuidados no uso do dinheiro enquanto as mulheres só têm a família na cabeça, inspiram mais confiança e precisam de ser protegidas dos seus maridos ou irmãos mais velhos. É uma caricatura da nossa realidade social, mas serve bem o propósito de nos definir como uma sociedade que precisa de mais “género” como condição de desenvolvimento. Tudo o que escrevi neste texto até aqui é, naturalmente, polémica. Não obstante, gostaria de sugerir que a noção de género, livre dos pressupostos problemáticos da indústria do desenvolvimento, constitui uma excelente perspectiva a partir da qual podemos começar a pensar seriamente no combate contra a pobreza. Ela obrigar-nos-ia a reflectir os constrangimentos estruturais que tornam o combate difícil ao mesmo tempo que chamaria a nossa atenção para o alcance normativo implicado na noção de desenvolvimento. Valeria à pena tentar.
E. Macamo
Maputo, Quarta-Feira, 14 de Abril de 2010:: Notícias